Carta Apostólica sob forma
de Motu Proprio
Porta Fidei
com a qual se proclama o Ano da Fé (out/2012 - out/2013)
Porta Fidei
com a qual se proclama o Ano da Fé (out/2012 - out/2013)
1. A PORTA DA FÉ
(cf. Act 14, 27), que
introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja, está
sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus
é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma. Atravessar
aquela porta implica embrenhar-se num caminho que dura a vida inteira. Este
caminho tem início com o Baptismo (cf. Rm 6, 4), pelo
qual podemos dirigir-nos a Deus com o nome de Pai, e está concluído com a
passagem através da morte para a vida eterna, fruto da ressurreição do Senhor
Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes da sua
própria glória quantos crêem n’Ele (cf. Jo17, 22). Professar a
fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – equivale a crer num só Deus que
é Amor (cf. 1 Jo 4,
8): o Pai, que na plenitude dos tempos enviou seu Filho para a nossa salvação;
Jesus Cristo, que redimiu o mundo no mistério da sua morte e ressurreição; o
Espírito Santo, que guia a Igreja através dos séculos enquanto aguarda o
regresso glorioso do Senhor.
2. Desde o
princípio do meu ministério como Sucessor de Pedro, lembrei a necessidade de
redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a
alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo. Durante a homilia da
Santa Missa no início do pontificado, disse: «A Igreja no seu conjunto, e os
Pastores nela, como Cristo devem pôr-se a caminho para conduzir os homens fora
do deserto, para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele
que dá a vida, a vida em plenitude» (Homilia
no início do ministério petrino
do Bispo de Roma, (24
de Abril de 2005): AAS 97
(2005), 710). Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação
com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria
fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora um tal
pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado (Cf.
Bento XVI, Homilia
da Santa Missa no Terreiro do Paço (Lisboa – 11 de Maio de 2010): L’Osservatore
Romano (ed. port. de
15/V/2010), 3.). Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido
cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e
aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes
sectores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas.
3. Não podemos
aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique escondida (cf. Mt 5, 13-16).
Também o homem contemporâneo pode sentir de novo a necessidade de ir como a
samaritana ao poço, para ouvir Jesus que convida a crer n’Ele e a beber na sua
fonte, donde jorra água viva (cf. Jo 4, 14). Devemos readquirir o gosto de nos alimentarmos da
Palavra de Deus, transmitida fielmente pela Igreja, e do Pão da vida,
oferecidos como sustento de quantos são seus discípulos (cf. Jo 6, 51). De facto, em nossos dias
ressoa ainda, com a mesma força, este ensinamento de Jesus: «Trabalhai, não
pelo alimento que desaparece, mas pelo alimento que perdura e dá a vida eterna»
(Jo 6, 27). E a
questão, então posta por aqueles que O escutavam, é a mesma que colocamos nós
também hoje: «Que havemos nós de fazer para realizar as obras de Deus?» (Jo 6, 28).
Conhecemos a resposta de Jesus: «A obra de Deus é esta: crer n’Aquele que Ele
enviou» (Jo 6, 29). Por
isso, crer em Jesus Cristo é o caminho para se poder chegar definitivamente à salvação.
4. À luz de tudo
isto, decidi proclamar um Ano da Fé.
Este terá início a 11 de Outubro de 2012, no cinquentenário da abertura do
Concílio Vaticano II, e terminará na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Rei do Universo, a 24 de Novembro de 2013. Na referida data de 11 de Outubro de
2012, completar-se-ão também vinte anos da publicação do Catecismo
da Igreja Católica,
texto promulgado pelo meu Predecessor, o Beato Papa João Paulo II, (Cf. João
Paulo II, Const. ap. Fidei
depositum (11 de Outubro
de 1992): AAS 86
(1994), 113-118) com o objetivo de ilustrar a todos os fiéis a força e a beleza
da fé. Esta obra, verdadeiro fruto do Concílio Vaticano II, foi desejada pelo
Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985 como instrumento ao serviço da
catequese (Cf. Relação final do Sínodo Extraordinário dos Bispos (7 de Dezembro
de 1985), II, B, a, 4: L’Osservatore Romano (ed. port. de 22/XII/1985), 650) e foi realizado com a
colaboração de todo o episcopado da Igreja Católica. E uma Assembleia Geral do
Sínodo dos Bispos foi convocada por mim, precisamente para o mês de Outubro de
2012, tendo por tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Será uma ocasião
propícia para introduzir o complexo eclesial inteiro num tempo de particular
reflexão e redescoberta da fé. Não é a primeira vez que a Igreja é chamada a
celebrar um Ano da Fé. O
meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, proclamou um semelhante, em
1967, para comemorar o martírio dos apóstolos Pedro e Paulo no décimo nono
centenário do seu supremo testemunho. Idealizou-o como um momento solene, para
que houvesse, em toda a Igreja, «uma autêntica e sincera profissão da mesma
fé»; quis ainda que esta fosse confirmada de maneira «individual e colectiva, livre e consciente,
interior e exterior, humilde e franca» (Paulo VI, Exort. ap. Petrum
et
Paulum
Apostolos, no XIX centenário
do martírio dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (22 de Fevereiro de
1967): AAS 59 (1967),
196). Pensava que a Igreja poderia assim retomar «exacta consciência da sua
fé para a reavivar, purificar, confirmar, confessar» (Ibid.: o.c., 198.). As grandes
convulsões, que se verificaram naquele Ano, tornaram ainda mais evidente a
necessidade duma tal celebração. Esta terminou com aProfissão
de Fé do Povo de Deus,
(Paulo VI, Profissão Solene de Fé, Homilia
durante a Concelebração por ocasião do XIX centenário do martírio dos Apóstolos
São Pedro e São Paulo, no encerramento do «Ano da Fé» (30 de Junho de
1968): AAS 60 (1968),
433-445) para atestar como os conteúdos essenciais, que há séculos constituem o
património de todos os crentes,
necessitam de ser confirmados, compreendidos e aprofundados de maneira sempre
nova para se dar testemunho coerente deles em condições históricas diversas das
do passado.
5. Sob
alguns aspectos, o meu venerado Predecessor viu este Ano como uma «consequência
e exigência pós-conciliar» (Paulo VI, Audiência Geral (14 de Junho de 1967): Insegnamenti V (1967), 801),
bem ciente das graves dificuldades daquele tempo sobretudo no que se referia à
profissão da verdadeira fé e da sua recta
interpretação. Pareceu-me que fazer coincidir o início do Ano
da Fé com o
cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II poderia ser uma ocasião
propícia para compreender que os textos deixados em herança pelos Padres
Conciliares, segundo as palavras do Beato João Paulo II, «não
perdem o seu valor nem a sua beleza. É necessário fazê-los ler de forma tal que possam ser
conhecidos e assimilados como textos qualificados e normativos do Magistério,
no âmbito da Tradição da Igreja. Sinto hoje ainda mais intensamente o dever de
indicar o Concílio como a grande graça de que beneficiou a Igreja no século XX: nele se encontra
uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que começa» (João
Paulo II, Carta ap. Novo
millennio
ineunte (6 de Janeiro
de 2001), 57: AAS 93
(2001), 308). Quero aqui repetir com veemência as palavras que disse a
propósito do Concílio poucos meses depois da minha eleição para Sucessor de
Pedro: «Se o lermos e recebermos guiados por uma justa hermenêutica, o Concílio
pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a renovação sempre
necessária da Igreja» (Discurso
à Cúria Romana,
(22 de Dezembro de 2005): AAS 98
(2006), 52).
6. A renovação
da Igreja realiza-se também através do testemunho prestado pela vida dos
crentes: de facto, os cristãos são
chamados a fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade
que o Senhor Jesus nos deixou. O próprio Concílio, na Constituição
dogmática Lumen Gentium,
afirma: «Enquanto Cristo “santo, inocente, imaculado” (Heb 7, 26), não
conheceu o pecado (cf. 2 Cor 5,
21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf. Heb 2, 17), a
Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre
necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação.
A Igreja “prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das
consolações de Deus”, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha
(cf. 1
Cor 11, 26). Mas é
robustecida pela força do Senhor ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência
e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas,
e a revelar, velada mas fielmente, o seu mistério, até que por fim se manifeste
em plena luz» (Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a
Igreja Lumen
Gentium, 8).
Nesta
perspectiva, o Ano da Fé é
convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do
mundo. No mistério da sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor
que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos
pecados (cf. Act 5,
31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem numa vida nova: «Pelo Baptismo fomos sepultados com
Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos
pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova» (Rm 6, 4). Em
virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a
novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os
pensamentos e os afectos, a mentalidade e o
comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao
longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A «fé, que actua pelo amor» (Gl 5, 6), torna-se
um novo critério de entendimento e de acção,
que muda toda a vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17).
7. «Caritas
Christi urget
nos – o amor de
Cristo nos impele» (2 Cor 5,
14): é o amor de Cristo que enche os nossos corações e nos impele a
evangelizar. Hoje, como outrora, Ele envia-nos pelas estradas do mundo para
proclamar o seu Evangelho a todos os povos da terra (cf. Mt 28, 19). Com o
seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo,
Ele convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é
sempre novo. Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto
a favor duma nova evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e
reencontrar o entusiasmo de comunicar a fé. Na descoberta diária do seu amor,
ganha força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode
faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor
recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos
fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um
testemunho que é capaz de gerar: de facto,
abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a
aderir à sua Palavra a fim de se tornarem seus discípulos. Os crentes – atesta
Santo Agostinho – «fortificam-se acreditando» (De utilitate credendi, 1, 2). O Santo Bispo de Hipona
tinha boas razões para falar assim. Como sabemos, a sua vida foi uma busca
contínua da beleza da fé enquanto o seu coração não encontrou descanso em Deus
(Cf. Confissões, 1, 1). Os seus
numerosos escritos, onde se explica a importância de crer e a verdade da fé,
permaneceram até aos nossos dias como um património de
riqueza incomparável e consentem ainda a tantas pessoas à procura de Deus de
encontrarem o justo percurso para chegar à «porta da fé».
Por
conseguinte, só acreditando é que a fé cresce e se revigora; não há outra
possibilidade de adquirir certeza sobre a própria vida, senão abandonar-se
progressivamente nas mãos de um amor que se experimenta cada vez maior porque
tem a sua origem em Deus.
8. Nesta
feliz ocorrência, pretendo convidar os Irmãos Bispos de todo o mundo para que
se unam ao Sucessor de Pedro, no tempo de graça espiritual que o Senhor nos
oferece, a fim de comemorar o dom precioso da fé. Queremos celebrar este Ano de forma digna
e fecunda. Deverá intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os
crentes em Cristo a tornarem mais consciente e revigorarem a sua adesão ao
Evangelho, sobretudo num momento de profunda mudança como este que a humanidade
está a viver. Teremos oportunidade de confessar a fé no Senhor Ressuscitado nas
nossas catedrais e nas igrejas do mundo inteiro, nas nossas casas e no meio das
nossas famílias, para que cada um sinta fortemente a exigência de conhecer
melhor e de transmitir às gerações futuras a fé de sempre. Neste Ano, tanto as
comunidades religiosas como as comunidades paroquiais e todas as realidades
eclesiais, antigas e novas, encontrarão forma de fazer publicamente profissão
do Credo.
9. Desejamos
que este Ano suscite,
em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e
esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na
liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha
a acção da Igreja e a fonte
de onde promana toda a sua força»
(Conc. Ecum. Vat. II, Const.
sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium,
10). Simultaneamente esperamos que o testemunho de vida dos
crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé
professada, celebrada, vivida e rezada (Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei
depositum(11 de Outubro de
1992): AAS 86 (1994), 116)
e reflectir sobre o próprio acto com que se crê, é um
compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo neste Ano.
Não
foi sem razão que, nos primeiros séculos, os cristãos eram obrigados a aprender
de memória o Credo. É
que este servia-lhes de oração diária, para não esquecerem o compromisso
assumido com o Baptismo. Recorda-o, com
palavras densas de significado, Santo Agostinho quando afirma numa homilia
sobre a redditio symboli (a entrega
do Credo): «O símbolo do
santo mistério, que recebestes todos juntos e que hoje proferistes um a um,
reúne as palavras sobre as quais está edificada com solidez a fé da Igreja,
nossa Mãe, apoiada no alicerce seguro que é Cristo Senhor. E vós recebeste-lo e
proferiste-lo, mas deveis tê-lo sempre presente na mente e no coração, deveis
repeti-lo nos vossos leitos, pensar nele nas praças e não o esquecer durante as
refeições; e, mesmo quando o corpo dorme, o vosso coração continue de vigília
por ele» (Sermo 215, 1).
10. Queria
agora delinear um percurso que ajude a compreender de maneira mais profunda os
conteúdos da fé e, juntamente com eles, também o acto
pelo qual decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a Deus. De facto, existe uma unidade
profunda entre o acto com que se crê e os
conteúdos a que damos o nosso assentimento. O apóstolo Paulo permite entrar
dentro desta realidade quando escreve: «Acredita-se com o coração e, com a
boca, faz-se a profissão de fé» (Rm 10, 10). O coração indica que o primeiro acto, pelo qual se chega
à fé, é dom de Deus e acção da graça que age e
transforma a pessoa até ao mais íntimo dela mesma.
A
este respeito é muito eloquente o exemplo de Lídia. Narra São Lucas que o
apóstolo Paulo, encontrando-se em Filipos,
num sábado foi anunciar o Evangelho a algumas mulheres; entre elas, estava
Lídia. «O Senhor abriu-lhe o coração para aderir ao que Paulo dizia» (Act 16, 14). O
sentido contido na expressão é importante. São Lucas ensina que o conhecimento
dos conteúdos que se deve acreditar não é suficiente, se depois o coração –
autêntico sacrário da pessoa – não for aberto pela graça, que consente de ter
olhos para ver em profundidade e compreender que o que foi anunciado é a
Palavra de Deus.
Por
sua vez, o professar com a boca indica que a fé implica um testemunho e um
compromisso públicos. O cristão não pode jamais pensar que o crer seja um facto privado. A fé é
decidir estar com o Senhor, para viver com Ele. E este «estar com Ele» introduz
na compreensão das razões pelas quais se acredita. A fé, precisamente porque é
um acto da liberdade, exige
também assumir a responsabilidade social daquilo que se acredita. No dia de
Pentecostes, a Igreja manifesta, com toda a clareza, esta dimensão pública do
crer e do anunciar sem temor a própria fé a toda a gente. É o dom do Espírito Santo
que prepara para a missão e fortalece o nosso testemunho, tornando-o franco e
corajoso.
A
própria profissão da fé é um acto simultaneamente
pessoal e comunitário. De facto, o primeiro sujeito
da fé é a Igreja. É na fé da comunidade cristã que cada um recebe o Baptismo, sinal eficaz da
entrada no povo dos crentes para obter a salvação. Como atesta o Catecismo
da Igreja Católica,
«“Eu creio”: é a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente,
principalmente por ocasião do Baptismo. “Nós cremos”: é a
fé da Igreja, confessada pelos bispos reunidos em Concílio ou, de modo mais
geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. “Eu creio”: é também a Igreja,
nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer: “Eu creio”,
“Nós cremos”» (Catecismo da Igreja Católica, 167).
Como
se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o
próprio assentimento, isto é, para aderir
plenamente com a inteligência e a vontade a quanto é proposto pela Igreja. O
conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado por Deus.
Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se aceita
livremente todo o mistério da fé, porque o garante da sua verdade é o próprio
Deus, que Se revela e permite conhecer o seu mistério de amor (Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católicaDei Filius, cap. III: DS 3008-3009;
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação
divina Dei
Verbum, 5).
Por
outro lado, não
podemos esquecer que, no nosso contexto cultural, há muitas pessoas que, embora
não reconhecendo em si mesmas o dom da fé, todavia vivem uma busca sincera do
sentido último e da verdade definitiva acerca da sua existência e do mundo.
Esta busca é um verdadeiro «preâmbulo» da fé, porque move as pessoas pela
estrada que conduz ao mistério de Deus. De facto, a
própria razão do homem traz inscrita em si mesma a exigência «daquilo que vale
e permanece sempre» (Bento XVI, Discurso
no «Collège
des
Bernardins»(Paris, 12 de
Setembro de 2008): AAS 100
(2008), 722). Esta exigência constitui um convite permanente, inscrito
indelevelmente no coração humano, para se pôr a caminho ao encontro d’Aquele
que não teríamos procurado se Ele não tivesse já vindo ao nosso encontro (Cf.
Santo Agostinho, Confissões,
13, 1). É precisamente a este encontro que nos convida e abre plenamente a fé.
11. Para
chegar a um conhecimento sistemático da fé, todos podem encontrar um subsídio
precioso e indispensável no Catecismo da Igreja Católica. Este constitui um
dos frutos mais importantes do Concílio Vaticano II. Na Constituição
Apostólica Fidei depositum –
não sem razão assinada na passagem do trigésimo aniversário da abertura do
Concílio Vaticano II – o Beato João Paulo II escrevia: «Este catecismo dará um
contributo muito importante à obra de renovação de toda a vida eclesial (...).
Declaro-o norma segura para o ensino da fé e, por isso, instrumento válido e
legítimo ao serviço da comunhão eclesial» (João Paulo II, Const. ap. Fidei
depositum (11 de Outubro de
1992): AAS 86 (1994), 115
e 117).
É
precisamente nesta linha que o Ano da Fé deverá exprimir um esforço generalizado em prol da
redescoberta e do estudo dos conteúdos fundamentais da fé, que têm
no Catecismo da Igreja Católica a sua síntese sistemática e orgânica. Nele, de facto, sobressai a riqueza
de doutrina que a Igreja acolheu, guardou e ofereceu durante os seus dois mil
anos de história. Desde a Sagrada Escritura aos Padres da Igreja, desde os
Mestres de teologia aos Santos que atravessaram os séculos, o Catecismo oferece uma
memória permanente dos inúmeros modos em que a Igreja meditou sobre a fé e
progrediu na doutrina para dar certeza aos crentes na sua vida de fé.
Na
sua própria estrutura, o Catecismo da Igreja Católica apresenta o
desenvolvimento da fé até chegar aos grandes temas da vida diária. Repassando
as páginas, descobre-se que o que ali se apresenta não é uma teoria, mas o
encontro com uma Pessoa que vive na Igreja. Na verdade, a seguir à profissão de
fé, vem a explicação da vida sacramental, na qual Cristo está presente e
operante, continuando a construir a sua Igreja. Sem a liturgia e os
sacramentos, a profissão de fé não seria eficaz, porque faltaria a graça que
sustenta o testemunho dos cristãos. Na mesma linha, a doutrina do Catecismo sobre a vida
moral adquire todo o seu significado, se for colocada em relação com a fé, a
liturgia e a oração.
12. Assim,
no Ano em questão,
o Catecismo
da Igreja Católica poderá
ser um verdadeiro instrumento de apoio da fé, sobretudo para quantos têm a
peito a formação dos cristãos, tão determinante no nosso contexto cultural. Com
tal finalidade, convidei a Congregação para a Doutrina da Fé a redigir, de
comum acordo com os competentes Organismos da Santa Sé, uma Nota, através da qual se
ofereçam à Igreja e aos crentes algumas indicações para viver, nos moldes mais
eficazes e apropriados, este Ano da Fé ao serviço do crer e do evangelizar.
De facto, em nossos dias mais
do que no passado, a fé vê-se sujeita a uma série de interrogativos, que provêm
duma diversa mentalidade que, particularmente hoje, reduz o âmbito das certezas
racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas. Mas, a Igreja nunca
teve medo de mostrar que não é possível haver qualquer conflito entre fé e
ciência autêntica, porque ambas tendem, embora por caminhos diferentes, para a
verdade (Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides
et
ratio (14 de Setembro
de 1998), 34.106: AAS 91
(1999), 31-32.86-87).
13. Será decisivo
repassar, durante este Ano, a
história da nossa fé, que faz ver o mistério insondável da santidade
entrelaçada com o pecado. Enquanto a primeira põe em evidência a grande
contribuição que homens e mulheres prestaram para o crescimento e o progresso
da comunidade com o testemunho da sua vida, o segundo deve provocar em todos
uma sincera e contínua obra de conversão para experimentar a misericórdia do
Pai, que vem ao encontro de todos.
Ao
longo deste tempo, manteremos o olhar fixo sobre Jesus Cristo, «autor e
consumador da fé» (Heb 12,
2): n’Ele encontra plena realização toda a ânsia e anélito do coração humano. A
alegria do amor, a resposta ao drama da tribulação e do sofrimento, a força do
perdão face à ofensa recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte, tudo
isto encontra plena realização no mistério da sua Encarnação, do seu fazer-Se
homem, do partilhar connosco a fragilidade humana
para a transformar com a força da sua ressurreição. N’Ele, morto e ressuscitado
para a nossa salvação, encontram plena luz os exemplos de fé que marcaram estes
dois mil anos da nossa história de salvação.
Pela
fé, Maria acolheu a palavra do Anjo e acreditou no anúncio de que seria Mãe de
Deus na obediência da sua dedicação (cf. Lc 1, 38). Ao visitar Isabel, elevou o seu cântico de louvor
ao Altíssimo pelas maravilhas que realizava em quantos a Ele se confiavam
(cf. Lc 1, 46-55). Com
alegria e trepidação, deu à luz o seu Filho unigénito,
mantendo intacta a sua virgindade (cf. Lc 2, 6-7). Confiando em José, seu Esposo, levou Jesus para
o Egipto a fim de O salvar da
perseguição de Herodes (cf. Mt 2, 13-15). Com a mesma fé, seguiu o Senhor na sua
pregação e permaneceu a seu lado mesmo no Gólgota
(cf. Jo 19, 25-27). Com
fé, Maria saboreou os frutos da ressurreição de Jesus e, conservando no coração
a memória de tudo (cf. Lc 2,
19.51), transmitiu-a aos Doze reunidos com Ela no Cenáculo para receberem o
Espírito Santo (cf. Act 1,
14; 2, 1-4).
Pela
fé, os Apóstolos deixaram tudo para seguir o Mestre (cf. Mc 10, 28).
Acreditaram nas palavras com que Ele anunciava o Reino de Deus presente e
realizado na sua Pessoa (cf. Lc 11,
20). Viveram em comunhão de vida com Jesus, que os instruía com a sua doutrina,
deixando-lhes uma nova regra de vida pela qual haveriam de ser reconhecidos
como seus discípulos depois da morte d’Ele (cf. Jo 13, 34-35).
Pela fé, foram pelo mundo inteiro, obedecendo ao mandato de levar o Evangelho a
toda a criatura (cf. Mc 16,
15) e, sem temor algum, anunciaram a todos a alegria da ressurreição, de que
foram fiéis testemunhas.
Pela
fé, os discípulos
formaram a primeira comunidade reunida à volta do ensino dos Apóstolos, na
oração, na celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para
acudir às necessidades dos irmãos (cf. Act2, 42-47).
Pela
fé, os mártires deram a sua vida para testemunhar a verdade do Evangelho que os
transformara, tornando-os capazes de chegar até ao dom maior do amor com o
perdão dos seus próprios perseguidores.
Pela
fé, homens e mulheres consagraram a sua vida a Cristo, deixando tudo para viver
em simplicidade evangélica a obediência, a pobreza e a castidade, sinais
concretos de quem aguarda o Senhor, que não tarda a vir. Pela fé, muitos
cristãos se fizeram promotores de uma acção em
prol da justiça, para tornar palpável a palavra do Senhor, que veio anunciar a
libertação da opressão e um ano de graça para todos (cf. Lc 4, 18-19).
Pela
fé, no decurso dos séculos, homens e mulheres de todas as idades, cujo nome
está escrito no Livro da vida (cf.Ap 7, 9; 13, 8), confessaram a beleza de seguir o Senhor
Jesus nos lugares onde eram chamados a dar testemunho do seu ser cristão: na
família, na profissão, na vida pública, no exercício dos carismas e ministérios
a que foram chamados.
Pela
fé, vivemos também nós, reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa
vida e na história.
14. O Ano
da Fé será uma
ocasião propícia também para intensificar o testemunho da caridade. Recorda São
Paulo: «Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas
a maior de todas é a caridade» (1 Cor13, 13). Com palavras ainda mais incisivas – que não cessam de
empenhar os cristãos –, afirmava o apóstolo Tiago: «De que aproveita, irmãos,
que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá
salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento
quotidiano, e um de vós lhes disser: “Ide em paz, tratai de vos aquecer e de
matar a fome”, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes
aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente
morta. Mais ainda! Poderá alguém alegar sensatamente: “Tu tens a fé, e eu tenho
as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te
mostrarei a minha fé”» (Tg 2,
14-18).
A
fé sem a caridade não dá fruto, e a caridade sem a fé seria um sentimento
constantemente à mercê da dúvida. Fé e caridade reclamam-se mutuamente, de tal
modo que uma consente à outra de realizar o seu caminho. De facto, não poucos cristãos
dedicam amorosamente a sua vida a quem vive sozinho, marginalizado ou excluído,
considerando-o como o primeiro a quem atender e o mais importante a socorrer,
porque é precisamente nele que se espelha o próprio rosto de Cristo. Em virtude
da fé, podemos reconhecer naqueles que pedem o nosso amor o rosto do Senhor
ressuscitado. «Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a
Mim mesmo o fizestes» (Mt 25,
40): estas palavras de Jesus são uma advertência que não se deve esquecer e um
convite perene a devolvermos aquele amor com que Ele cuida de nós. É a fé que
permite reconhecer Cristo, e é o seu próprio amor que impele a socorrê-Lo
sempre que Se faz próximo nosso no caminho da vida. Sustentados pela fé,
olhamos com esperança o nosso serviço no mundo, aguardando «novos céus e uma
nova terra, onde habite a justiça» (2 Ped 3, 13; cf. Ap 21, 1).
15.
Já no termo da sua vida, o apóstolo Paulo pede ao discípulo Timóteo que
«procure a fé» (cf. 2 Tm 2,
22) com a mesma constância de quando era novo (cf. 2 Tm 3, 15).
Sintamos este convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne
indolente na fé. Esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar
sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os
sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a tornar-se
sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo tem hoje
particular necessidade é o testemunho credível de quantos, iluminados na mente
e no coração pela Palavra do Senhor, são capazes de abrir o coração e a mente
de muitos outros ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem
fim.
Que
«a Palavra do Senhor avance e seja glorificada» (2 Ts 3, 1)! Possa este Ano da Fé tornar cada vez
mais firme a relação com Cristo Senhor, dado que só n’Ele temos a certeza para
olhar o futuro e a garantia dum amor autêntico e duradouro. As seguintes
palavras do apóstolo Pedro lançam um último jorro de luz sobre a fé: «É por
isso que exultais de alegria, se bem que, por algum tempo, tenhais de andar
aflitos por diversas provações; deste modo, a qualidade genuína da vossa fé –
muito mais preciosa do que o ouro perecível, por certo também provado pelo fogo
– será achada digna de louvor, de glória e de honra, na altura da manifestação
de Jesus Cristo. Sem O terdes visto, vós O amais; sem O ver ainda, credes n’Ele
e vos alegrais com uma alegria indescritível e irradiante, alcançando assim a
meta da vossa fé: a salvação das almas» (1 Ped 1, 6-9). A vida dos cristãos conhece a experiência da
alegria e a do sofrimento. Quantos Santos viveram na solidão! Quantos crentes,
mesmo em nossos dias, provados pelo silêncio de Deus, cuja voz consoladora
queriam ouvir! As provas da vida, ao mesmo tempo que permitem compreender o
mistério da Cruz e participar nos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1, 24) , são
prelúdio da alegria e da esperança a que a fé conduz: «Quando sou fraco, então
é que sou forte» (2 Cor 12,
10). Com firme certeza, acreditamos que o Senhor Jesus derrotou o mal e a
morte. Com esta confiança segura, confiamo-nos a Ele: Ele, presente no meio de
nós, vence o poder do maligno (cf. Lc 11, 20); e a Igreja, comunidade visível da sua
misericórdia, permanece n’Ele como sinal da reconciliação definitiva com o Pai.
À
Mãe de Deus, proclamada «feliz porque acreditou» (cf. Lc 1, 45),
confiamos este tempo de graça.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 11 de Outubro do
ano 2011, sétimo de Pontificado.
Benedictus PP. XVI